Indicado a cinco Oscar (Melhor Filme, Direção, Atriz, Roteiro Original e Edição) este ano, e vencedor do prêmio de Roteiro Original, o filme francês “Anatomia de uma Queda”, que chega hoje à Amazon Prime Video, não foi a escolha francesa para a categoria de Filme Internacional no Oscar 2024.
Apesar de ter sido o Palma de Ouro em Cannes, o mais prestigioso festival de cinema do mundo, o filme de Justine Triet foi preterido por “Sabor da Vida”. Há duas teorias para isso: a primeira é de que a confiança no filme de Triet era tão alta que as indicações aos prêmios principais já eram dadas como certas, o que colocaria a França com dois longas no Oscar; a outra, bem plausível, é que as críticas de Triet ao governo francês tenham causado uma represália. “Sabor da Vida”, vale ressaltar, não figurou entre os cinco indicados na referida categoria e teve sua estreia no Brasil adiada por isso.
“Anatomia de uma Queda” é um drama que acompanha a escritora alemã Sandra (Sandra Hüller, indicada a Melhor Atriz) após a misteriosa morte de seu marido, Samuel (Samuel Theis), que caiu do sótão da casa em quer moravam, no interior da França. A única possível testemunha do ocorrido é Daniel (Milo Machado-Graner), um jovem cego, e agora Sandra terá que provar na justiça que não foi a responsável pela morte de Samuel.
O roteiro escrito por Triet e Arthur Harari traz uma história simples, um drama jurídico como tantos outros, mas com algumas camadas e, principalmente, uma roupagem “cult”. A história vai sendo desconstruída gradualmente, ganhando novos detalhes e tons ao desenrolar do julgamento.
O texto funciona muito bem e tem seu grande mérito justamente em fazer o espectador se questionar – a vontade de acreditar na protagonista é pulsante, mas nem sempre as provas corroboram com ela. Aos poucos, ainda, o drama jurídico se aprofunda na história do casal quando ela é esmiuçada pela acusação na tentativa de colar em Sandra uma motivação sólida para matar Samuel.
“Um casal é uma espécie de caos”, diz a protagonista em certo momento, antes de mergulharmos nas entranhas do relacionamento daquele casal. A relação entre Sandra e Samuel é cheia de marcas, do acidente que deixou Daniel cego ao sucesso dela como escritora enquanto ele fracassou no mesmo ramo.
“Anatomia de uma Queda” funciona, também, por suas atuações. Merecidamente indicada ao Oscar, Sandra Hüller usa a força do texto em uma atuação impecável. É sobre a ambiguidade de Sandra, a personagem, que o filme é construído; ela é imperfeita, meticulosa e imprevisível, mas é também carinhosa e atenciosa.
O fato de Sandra ser uma alemã em um julgamento na França, sem a fluência no idioma, dá a impressão de que ela tem o mundo contra si, levando o público para seu lado. É interessante quando o idioma entra em discussão também no relacionamento que encontrou um meio-termo no inglês – há falhas de comunicação, perdas na tradução em momentos íntimos…
Milo Machado-Graner é outro grande destaque do filme, com Daniel ironicamente fazendo as vezes do espectador na trama. O filme é delicado com a condição do jovem e tenta nos levar para o seu lado, o que é essencial para o terceiro ato de “Anatomia de uma Queda”. A atuação de Machado-Graner é ótima justamente por retratar a insegurança e as incertezas daquela situação. Sutilmente, é possível perceber o momento exato em que Daniel entende que, se a mãe for presa, ela perde os dois pais. O que será dele, um jovem cego, a partir dali?
Tecnicamente, o filme de Justine Triet também se destaca, principalmente na fotografia de Simon Beaufil, que alterna ambientes fechados e outros amplamente abertos e quase sempre cobertos de neve. A ideia é a confusão, a mudança de tons, dois lados, a ambiguidade, e tudo isso é potencializado pela trilha sonora em pontos-chave da trama. Da mesma forma, o filme utiliza closes em Sandra em momentos mais tensos, com a intenção de compartilharmos sua dor, por exemplo, quando ela detalha o acidente do filho.
A história poderia ser contada de outra maneira, com uma narrativa mais linear ou com foco no aspecto legal, o que aproximaria o filme à boa série “A Escada”, da HBO Max, uma história bem parecida. Mas é justamente na escolha por uma roupagem diferente e na excelência de atuações, texto, direção e aspectos técnicos que “Anatomia de uma Queda” se torna um grande filme.
コメント