Lançado em 2009, “Um Dia”, de David Nicholls, se tornou um fenômeno editorial ao acompanhar, por 20 anos, a relação entre Dexter e Emma. A narrativa da história é que de fato chamava a atenção: o autor os acompanhava por duas décadas relatando ao espectador um dia de cada ano. O livro é ótimo, de fácil leitura, com texto ágil e pouco didático no esforço de preencher algumas lacunas – a maioria delas, no entanto, cabia ao leitor preencher a seu modo.
Uma adaptação cinematográfica parecia inevitável e ganhou vida em 2011, com o filme dirigido por Lone Scherfig (“Educação”), a partir do roteiro do próprio Nicholls, e estrelado por Anne Hathaway e Jim Sturgess. Mesmo não sendo ruim, e tendo boa recepção do público (se tornou até relativamente cult), faltava ao filme um tipo de narrativa que seria impossível de existir ali, com 115 minutos de projeção, oferecendo uma experiência mais imediata e menos contemplativa. Talvez seja justamente por isso que a nova versão de “Um Dia”, lançada como minissérie pela Netflix, funciona magicamente bem.
A experiência de uma série em 14 episódios de cerca de 30 minutos cada se assemelha mais à experiência de leitura de capítulos. Assim, a série permite que o espectador não apenas acompanhe os dias de Dexter e Emma, mas que também pense nas possibilidades nos “e se…” da própria vida e, com isso, se identifique com as pessoas e situações que vê em tela.
“Um Dia” tem início em 15 de julho de 1988, quando Emma (Ambika Mod) e Dexter (Leo Woodall) se formam e passam a noite juntos. Não há sexo (não por falta de vontade dele...), mas eles se conectam, gostando mais do outro do que conseguiam admitir à época. Eles decidem passar aquele dia juntos, o “primeiro dia da vida adulta” de ambos; as coisas não saem como planejado, mas eles combinam de se manter em contato.
A partir daí, a série acompanha esse mesmo dia nos 20 anos seguintes, acompanhando seus protagonistas em diferentes etapas da vida, entre altos e baixos, com sonhos e motivações se transformando, com cicatrizes se consolidando e plantando a dúvida: “por que, afinal, eu mantenho essa relação?”.
Emma é engraçada, sarcástica, um pouco autodepreciativa, mas segura de si; já Dexter acha que seu charme de rapaz nobre basta para ele alcançar tudo o que almeja na vida.
O texto da série reforça as diferenças entre Dexter e Emma; ele vem de família rica, nunca precisou se esforçar para nada, enquanto ela é filha da classe operária de Leeds. Essa construção é importante na maneira como o roteiro desenvolve cada um ao longo dos anos, seus sucessos e suas frustrações, e ajuda na também na empatia que cada personagem desperta.
Ambika Mod, em seu primeiro grande papel, é ótima como Emma. Sua construção de personagem é cheia de camadas e de sentimentos conflitantes facilmente percebidos no rosto da atriz – em certo ponto, ela vê Dexter acidentalmente, enquanto não estão muito bem, e suas expressões dizem tudo o que a cena precisa dizer. Sim, ela o ama e talvez esteja arrependida, mas vale a pena voltar àquela relação?
Woodall, por sua vez, tem o desafio de ser um grande imbecil durante boa parte da narrativa, tarefa que cumpre bem, mas ele também é eficaz em ser charmoso. Graças ao bom texto original de Nicholls, adaptado agora por Nicole Taylor, o espectador é levado a “entender” o lado do personagem e, principalmente, sua vontade constante de melhorar, de se fazer digno para Emma, o que revela tanto sua motivação quanto o tamanho do amor por sua coprotagonista.
“Um Dia” funciona excepcionalmente bem por se manter bem próxima da realidade. As situações vividas por eles, individualmente, despertam identificação, mas é o relacionamento deles ao longo dos anos o verdadeiro coração da série. É do livro de Nicholls, e de suas adaptações, uma das frases mais bonitas e cruéis da cultura pop das últimas décadas: “Eu te amo, muito, eu apenas não gosto mais de você”.
A ambiguidade de sentimentos que a série carrega se dá ao separar os sentimentos que se misturam no imaginário popular. O amor talvez seja algo imutável, que permaneça, que marque, mesmo que seja passado. Neste ponto, o “gostar” é o presente, é a vontade de estar junto, de construir uma vida…
“Um Dia” ainda conta com bons coadjuvantes que têm tempo de tela e desenvolvimento novamente graças à estrutura narrativa da série, e uma excelente trilha sonora que captura bem a passagem dos anos, passeando por nomes como Massive Attack, Suede e Belle and Sebastian. A série também é muito boa em recriar atmosferas distintas para cada encontros, retratando o estado dos personagens (ou criando um contraste com eles) e da relação deles.
É curioso como “Um Dia”, em sua nova versão, se aproxima de uma história influenciada pelo livro de Nicholls, “Normal People”. A minisséria da Netflix é cheia de possibilidades e situações bem construídas que fazem o espectador questionar o que teria acontecido se um detalhe da história, apenas um detalhe, tivesse acontecido de maneira diferente. Será que Emma e Dexter teriam uma vida juntos desde o início? Será que a relação deles se sustentaria se eles tivessem ficado juntos em outro momento da história? Será que teria valido a pena?
Comments