Após ter seu livro “A Praia” adaptado para os cinemas por Danny Boyle em 2000, Alex Garland foi gradualmente mergulhando na indústria. A parceria com Boyle continuou nos ótimos “Extermínio” (2002) e “Sunshine” (2007) antes de Garland seguir outros rumos - escreveu roteiro de jogos, mercado em que diz ter aprendido a trabalhar possibilidades infinitas, roteirizou o bom “Não Me Abandone Jamais” (2010), de Mark Romanek, e se enveredou pela direção. “Ex-Machina” (2014), seu filme de estreia, é excelente, uma das grandes ficções científicas da última década, e acabou indicado a dois Oscar: Melhor Roteiro Original e Efeitos Visuais (que venceu).
Em alta, o cineasta viu seu segundo filme, “Aniquilação”, nascer cheio de expectativas. Estrelado por Natalie Portman a partir de uma série de livros de sucesso, o filme não agradou a Paramount, dona dos direitos, que esperava uma obra menos existencial, algo no estilo “A Chegada”. Garland bateu o pé, não amenizou o tom de seu filme, mas ficou irritado quando ele acabou vendido à Netflix, sem lançamento nos cinemas fora dos EUA. Garland, então, se voltou para a televisão, tendo escrito, produzido e dirigido a ótima “Devs”, disponível no Star+.
O cineasta voltou com “Men - Faces do Medo”, agora disponível no Prime Video, um filme que guarda semelhanças com “Aniquilação”, mas tem forças para incomodar por conta própria. Conhecemos Harper (Jessie Buckley, de “A Filha Perdida”), uma mulher em recuperação do grande trauma que foi seu último relacionamento. Em busca de tranquilidade, ela aluga uma casinha em um vilarejo remoto na Inglaterra, onde é recebida por Geoffrey (Rory Kinnear), um sujeito estranho, com piadas e perguntas invasivas, mas nada com o que Harper já não estivesse acostumada.
Em uma caminhada pela região, Harper se depara com uma figura que parece persegui-la, um homem nu. O peladão acaba preso pela polícia e percebemos uma peculiaridade: todos os homens do vilarejo têm o mesmo rosto (o de Rory Kinnear). Os homens dividem também um comportamento tóxico e misógino - de uma criança ao padre, passando pelo policial, pelo dono da casa e pelo barman.
É interessante como o texto trata essa situação com a protagonista; a semelhança física entre os homens nunca é notada por Harper. Essa escolha de Garland confere um ar frequente de pesadelo ao filme e nos ajuda a entender o estado de confusão de uma mulher recém-saída de um relacionamento abusivo - todos os homens representam uma ameaça e perpetuam discursos e comportamentos tóxicos como se fossem normais.
“Men” acerta também a quase que imediatamente descartar qualquer questão acerca da sanidade mental de Harper. Assim, o filme se transforma em um terror folclórico com forte estética de thriller psicológico. Garland usa interpretações das figuras folclóricas da Sheela e do Homem Verde para relacionar os abusos sofridos por Harper ao que ela enfrenta no filme — o Homem Verde simboliza o recomeço após o luto, enquanto a figura de Sheela é tida como simbolo de fertilidade responsável por afastar o mal e curar os doentes.
Folclore à parte, “Men” tem altos e baixos. A ambientação é impecável e transmite a sensação de isolamento ao trabalhar com maestria o som e uma fotografia que remete ao cinema de Lars Von Trier. Garland explora a profundidade e os segundos planos para causar tensão com sombras, vultos ou imagens diretas que são vistas pelo espectador à revelia da protagonista, ou seja, nós sabemos que o perigo se aproxima.
Esse clima de terror intimista, no entanto, é abandonado quando “Men” passa a buscar o desconforto. Mesmo em uma sequência de 17 minutos sem um diálogo sequer, o filme prende o espectador com a tensão de um terror mais visual e flashbacks que reconstroem o passado de Harper. Garland opta por recursos visuais para explicar algumas coisas e principalmente para conectar outras, deixando claras as suas intenções, mas afastando o filme do didatismo.
“Men” abusa dos simbolismos para contar uma história de trauma e recomeço. O filme constrói bem a dor de Harper e deixa imagens de seu trauma presas na cabeça do espectador para entendermos a dificuldade dela de se livrar daquilo. Os diálogos são fortes, lembrando-a sempre do ocorrido e às vezes até a culpando pelo que viveu; Harper não luta apenas contra seus traumas, mas contra dogmas ancestrais que responsabilizam as mulheres por escolhas equivocadas dos homens.
Com uma mensagem tão bem construída e um grande desconforto visual, “Men” incomoda, mas também oferece uma experiência difícil de ser esquecida. A recepção do filme provavelmente difere para homens e mulheres, mas ele dificilmente pode ser ignorado. Alex Garland, que já usou o terror para falar de depressão, agora o faz com a culpa, o luto e um grotesco retrato do machismo normalizado em diferentes esferas da sociedade.
Comments