Há alguns meses, antes de uma sessão de “Meu nome é Gal”, assisti ao trailer de “O Sequestro do Voo 375”. Ninguém no cinema pareceu muito empolgado com aquela prévia, que vendia um suspense meio genérico, com alguns efeitos visuais de qualidade duvidosa e uma história real da qual aparentemente ninguém se lembrava, ao menos as que estavam comigo (pessoas pelo menos seis anos mais novos do que eu). A verdade é que o trailer não faz jus ao filme de Marcus Baldini, agora disponível no Star+.
“O Sequestro do Voo 375” é uma história de um Brasil e uma realidade que hoje parecem distantes. A trama tem início em 29 de setembro de 1988, véspera da proclamação da Constituição e da implantação de mais um plano econômico, o Plano Verão, que transformaria a moda nacional no Cruzado Novo. O Brasil vivia um período de crise econômica com índices absurdos de hiperinflação e ainda não tinha se acostumado à democracia. José Sarney, o primeiro presidente civil pós-ditadura, havia sido colocado lá por um colégio eleitoral e como vice na chapa de Tancredo Neves, que faleceu antes de assumir, ou seja, sem o voto popular.
Quando o filme tem início, conhecemos Murilo (Danilo Grangheia), o piloto do voo. É o primeiro dia dele de retorno ao trabalho após ser colocado na geladeira da empresa por protestar por direitos trabalhistas. De imediato, o filme tenta traçar um paralelo entre seus dois protagonistas, o já citado Murilo e Nonato (Jorge Paz).
O piloto vive o drama de não ter salários por três meses em um país mergulhado na crise econômica; seu retorno aos voos é um respiro em meio ao desespero. Já Nonato vive drama parecido, mas não tem esse respiro, pelo contrário; do outro lado da linha do telefone, no Maranhão, ele ouve a mãe pedindo algum dinheiro, pois não tem como bancar mais comida. Assim, sua única solução é o último ato de um homem desesperado: ele decide sequestrar o voo com uma motivação simples: jogar o avião em cima do “filho da puta do Sarney” (palavras dele).
“O Sequestro do Voo 375” se esforça muito em recriar uma época, a começar pelo avião da finada Vasp e seus passageiros – para quem não viveu o período, viajar de avião era algo guardado aos mais ricos, era status, e, por isso, as pessoas viajavam muito arrumadas. O reforço desta recriação vem de passageiros fumando a bordo, da utilização de walkmans, ou de uma revista “Placar” falando sobre o Brasileirão daquele ano. Ainda, Murilo e seu copiloto, Evangelista (César Melo), conversam sobre o rock brasileiro dos anos 80 enquanto músicas de Cazuza e Barão Vermelho adicionam camadas à narrativa.
Esse distanciamento é importante ao filme porque ele depende que o espectador entenda estar em outra época. Por mais que 1989 não pareça tão distante (ao menos para mim), o aeroporto como Confins não tinha detector de metais e permitia, como permitiu, que Nonato embarcasse com uma arma, sem nenhum problema. Apesar de uma breve introdução sobre a política e a economia do Brasil da época, o filme talvez careça de contextualização para quem não viveu (ou não estudou) aquele período.
Como thriller, “O Sequestro do Voo 375” é excelente. Marcus Baldini entende a construção de tensão do filme, a necessidade de uma crescente com alguns momentos de picos e calmaria na narrativa. Isso é possível, claro, a partir da inacreditável história real do sequestro, mas também em função de Danilo Grangheia e Jorge Paz. É possível se identificar com os dois protagonistas, e eles se identificam um com o outro, criando uma espécie de cumplicidade torta que é compartilhada com o espectador, pois o desejo de jogar um avião em cima do José Sarney não era algo tão absurdo assim.
O thriller de Marcus Baldini em nada deixa a desejar ao cinema hollywoodiano do gênero. Tanto as cenas de dentro do avião quanto as da sala de controle são ótimas, ajudando a construir a tensão e o cenário do filme. Provavelmente de maneira intencional (o que só seria confirmado em papo com o diretor), o filme constrói militares e ministros como figuras repugnantes e que pouco se importam com a tripulação do voo.
É na figura de uma civil, Luiza (Roberta Gualda, também ótima), que o texto encontra um pouco de humanidade do lado de fora do avião. Se isso parece um detalhe, vale lembrar, mais uma vez, que o Brasil ainda vivia sob a sombra dos militares que, mesmo com o fim da ditadura, seguiam em cargos importantes.
“O Sequestro do Voo 375”, além de um excelente thriller, é um bom recorte de uma época. Parece detalhe, mas esses fatos se deram 15 anos antes dos atentados de 11 de setembro nos EUA e comprovadamente foram estudados por Osama Bin Laden antes do ataque. Da mesma forma, as histórias de Nonato e Murilo não podem ser esquecidas ou apagadas – o piloto nunca recebeu sequer um “valeu” do então presidente.
É importante ressaltar que o roteiro é baseado em um extenso trabalho de pesquisa do jornalista Constâncio Viana, que foi muito além das versões oficiais. Alguns momentos absurdos do filme, como as manobras realizadas por Murilo, de fato ocorreram – a realidade, às vezes, é mais impactante que a ficção. Assim, esqueça qualquer preconceito com o filme (o trailer realmente é ruim) e releve alguns poréns (como efeitos um pouco toscos), pois “O Sequestro do Voo 375” é um dos grandes filmes pop feitos no Brasil nos últimos anos.
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