Ontem (segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024), li na ótima Roteirada (recomendo, inclusive), newsletter do roteirista Pablo Leierer: “A primeira maneira de transcender um gênero é misturar os beats da história com outro gênero. Em vez de 'quebrar as regras', você está combinando elas (...) Quando você mistura todos os beats, as pessoas se animam porque você está subvertendo suas expectativas do que vai acontecer. Agora você mostrou a elas como o mundo funciona de uma nova maneira. Você prende a atenção do público porque a visão é algo que eles reconhecem – ainda é o mundo deles – mas é apresentado sob uma luz diferente.”
A frase não é de Leierer, mas devidamente referenciada por ele ao livro “Anatomy of Genre”, de John Truby, em um texto no qual fala sobre as comédias atuais, quase todas misturadas a outros gêneros, tendo “O Urso” e “Barry” como alguns exemplos. Trago a citação aqui para falar de “O Mestre da Fumaça”, comédia de kung-fu recentemente disponibilizada pela Netflix.
A mistura de artes marciais e humor obviamente não é uma novidade, ela já era realizada, por exemplo, nos filmes de Jackie Chan antes dele ser “descoberto” por Hollywood. Mais recentemente, no início dos anos 2000, o cineasta Stephen Chow equilibrou a fórmula em “Shaolin Soccer” (2001) e, principalmente, “Kung-Fusão” (2004), duas comédias absurdas, mas realizadas como filmes de artes marciais.
Escrito e dirigido pelos iniciantes Andre Sigwalt e Augusto Soares, “O Mestre da Fumaça” quer apenas divertir em sua mistura. Para isso, o texto utiliza a estrutura de filmes de artes marciais dos anos 1970, com uma história simples e que não oferece nenhum desafio ao espectador.
O filme tem início em 1949, na China, quando o mestre da fumaça utiliza sua técnica para derrotar alguns inimigos, mas acaba sofrendo uma derrota inesperada. Mais de meio século depois, em 2002, em São Paulo, conhecemos os irmãos Gabriel (Daniel Rocha) e Daniel (Thiago Stechinni), treinados e criados pelo mestre Abel (o saudoso Cléber Colombo) após a morte do pai.
A rotina deles é interrompida quando eles encontram alguns valentões da Tríade (poderosa máfia chinesa) pelo caminho. Claro que, estando diante de um filme de kung-fu, tudo é motivo para cenas de ação e, após um conflito entre Daniel e capangas da máfia, o irmão mais velho, treinado secretamente para ser o novo mestre da fumaça, se vê impossibilitado de fazê-lo. Assim, cabe a Gabriel, que não tem tanta experiência na “arte”, procurar o último mestre vivo, Yan Wu (Tony Lee). Quando chega a seu destino, Daniel precisa se aprofundar na arte da maconha para, assim, seguir os ensinamentos de seu mestre: “quando você solta a fumaça, você se torna a fumaça”.
“O Mestre da Fumaça” busca o humor na relação dos personagens com a maconha. O filme brinca com alguns estereótipos dos usuários, como, por exemplo, uma dupla de maconheiros que funciona como alívio cômico durante boa parte da trama, mas não exagera. No resto do tempo, o texto é como “Karate Kid”, mas sem os ensinamentos do Sr.Myagi (lavar carro, pintar cerca…), e sim com o mestre Yan Wu ensinando Gabriel a dichavar, bolar, fumar e a diferenciar cepas de maconha. Cada etapa é um ensinamento que ele precisará aprimorar para se aprofundar nas técnicas.
Trata-se é muito mais de um filme de ação com uma dose de humor do que uma comédia, de fato, “chapadona”. Para os fãs de porradaria, as lutas são muito boas, com coreografias inteligentes e com uma criativa utilização do cenário em algumas delas, como quando Daniel invade o QG de Caine. A qualidade das cenas, porém, depende também da habilidade dos atores envolvidos, mas elas quase sempre funcionam.
Surpreende que “O Mestre da Fumaça” se leve um pouco a sério ao invés de abraçar o ridículo que vai da premissa do filme, um kung-fu canábico, ao canastríssimo vilão, Caine (Tristan Aronovich). Ainda assim, o filme diverte, mesmo que frustre as expectativas construídas inicialmente pelo roteiro. É nessa sisudez de alguns momentos do texto que o filme se afasta dos já citados trabalhos de Stephen Chow e, também, de uma transgressão maior de gênero, de algo que o tornaria ainda mais único.
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