Poucos cineastas tiveram um início de carreira tão arrebatador quanto o britânico Guy Ritchie. No final dos anos 1990 e início dos anos 2000, Ritchie lançou os ótimos “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes” (1998) e “Snatch - Porcos e Diamantes” (2000), se mostrando como um dos mais promissores diretores/roteiristas de sua geração ao mergulhar num submundo de crime muito violento e de pouco glamour.
Após esse início, a carreira de Ritchie é irregular. Lançou filmes razoáveis, como “Rock'n'Rolla” (2008) e “Aladdin” (2019), além de ser o responsável pelos dois elogiados “Sherlock Holmes” estrelados por Robert Downey Jr, mas seu cinema parecia cada vez menos autoral. Com o tempo, o cineasta foi se tornando previsível em seu estilo, nunca ruim, mas um refém das próprias ideias que o consagraram.
No início de 2020, porém, Guy Ritchie lançou “Magnatas do Crime” (“The Gentlemen”), seu melhor filme em quase 20 anos, mas você provavelmente sabe o que aconteceu com o mundo no início daquele ano… Com a pandemia, o filme, hoje disponível no Prime Video, foi pouco visto e comentado, mas serviu de inspiração para a Netflix produzir uma de suas grandes apostas de série “séria” em 2024.
Devidamente intitulada “Magnatas do Crime”, a série tem a mesma premissa do filme: um aristocrata herda a propriedade de sua família e descobre que seu pai era sócio de um verdadeiro império de maconha e agora tem que descobrir o que fazer com isso. “Não seriam os aristocratas os primeiros gangsteres?”, questiona o diretor no material de divulgação da série.
A série tem início com Eddie Horniman (Theo James), um capitão do exército britânico servindo na fronteira entre Turquia e Síria, sendo informado do estado de saúde de seu pai e “convocado” de volta à Inglaterra. Com a morte do duque de Halstead, Eddie herda o título e a propriedade, para a surpresa de seu irmão mais velho, o cocainômano Freddy (Daniel Ings).
O texto logo faz questão de mostrar que os Halstead não são exatamente o que se espera de uma família de linhagem real. Eddie agora tem que lidar com as dívidas do irmão e o recém-descoberto plantio de drogas comandado por Susie Glass (Kaya Scodelario) e seu pai, Bobby (o saudoso Ray Winstone).
Em oito episódios de cerca de 45 minutos, “Magnatas do Crime” adota uma inteligente estrutura semi-procedural, com arcos individuais em cada episódio, mas tudo se conecta com naturalidade no decorrer da série. Essa escolha funciona, pois o universo criado por Guy Ritchie é rico em personagens interessantes do submundo do crime britânico, de aristocratas a ciganos, de mafiosos tradicionais e um sujeito extremamente religioso e violento.
Ritchie dirige os dois primeiros episódios e dá o tom da série. “Magnatas do Crime” é um texto violento, ágil, engraçado e inteligente, mas pouco sutil. Enquanto a trama principal se desenrola, subtramas ganham espaço, mas nem sempre são bem aproveitadas; a que envolve Lady Sabrina (Joely Richardson) e Geoff (Vinnie Jones), por exemplo, é boa, mas superficial, quase um extra ao arco principal. Da mesma forma, alguns personagens apenas se enquadram em caixinhas e estereótipos necessários para que o roteiro vá de um ponto a outro.
A série se beneficia das boas atuações de James e Scodelario. Ele encarna bem o aristocrata que entende quão fútil é o universo de aparências no qual sua família está inserida e, assim, enxerga na nova realidade uma situação interessante, mesmo que resista. Já Kaya é ótima como Susie Glass, uma mulher imprevisível e sempre no controle da situação, uma pessoa que conhece o submundo em que James está entrando. A relação dos dois é de uma admiração mútua, mas silenciosa, uma química cheia de camadas gradualmente desvendadas.
“Magnatas do Crime” é quase um “Ritchieverso”, passeando pelo estilo e por cenários que tornaram Guy Ritchie famoso décadas atrás. É interessante como a narrativa seriada, com mais tempo de tela, possibilita não apenas um desenvolvimento maior dos personagens, mas também alternâncias de dinâmicas. Os cortes rápidos para causar a sensação de caos e as câmeras lenta, para impacto, estão lá, mas são utilizadas com cautela justamente para evitar que o cineasta se torne mais uma vez refém delas.
“Magnatas do Crime”, justamente pela variedade de personagens, passeia por cenários que vão desde suntuosas casas de campo de nobres britânicos a clubes de lutas clandestinas e acampamentos nômades. Assim, em sua estreia oficial no mundo das séries (fizeram uma série de “Snatch”, mas ele não esteve envolvido), Guy Ritchie reúne em uma mesma trama os mundos pelos quais seus filmes passearam ao longo de anos.
Ao fim dos oito episódios, a vontade é de continuar naquele universo. A série encerra bem a história que se propõe a contar, mas deixa possibilidades abertas para novas histórias com aqueles personagens. Divertida, com bons personagens e um roteiro eficiente, “Magnatas do Crime” é uma das séries mais legais que a Netflix lança em algum tempo.
Comments