Em determinado ponto de “Ficção Americana”, uma televisão anuncia o “mês de histórias negras” em um canal com a intenção de “celebrar a diversidade da experiência afro-americana”. Em tela, apenas recortes de filmes sobre escravidão, violência, drogas, pobreza e sofrimento.
Essa cena ganha a tela pouco depois da sequência em que o protagonista Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright), um autor renomado, escreve, meio de zoação, uma obra de “literatura negra”, ou ao menos o que o mercado, dominado por brancos, julga ser essa literatura.
No filme de Cord Jefferson, indicado a cinco Oscars (Melhor Filme, Trilha Sonora Original, Ator, Ator Coadjuvante e Roteiro Adaptado), Monk, um talentoso autor negro, ouve que seus livros não são “negros o suficiente” para o mercado literário. Ele então cria um pseudônimo e lança um livro com todos os clichês possíveis – um autor que precisa se esconder das autoridades, crimes, gírias “do gueto”, famílias desfeitas e violência. O resultado? O livro se torna um fenômeno e o autor não sabe exatamente como lidar com isso.
“Ficção Americana” é uma dramédia com crítica social aos EUA, uma isca de Oscar perfeita, mas isso não diminui o filme de Cord Jefferson, roteirista em sua primeira incursão pela direção.
É muito interessante como a narrativa nunca pesa a mão ou aposta em coincidências para contar a ótima história de Monk e sua família, uma história que, ironicamente, daria um belo romance escrito por autores como o americano Johnathan Franzen ou até o britânico Nick Hornby, ambos, vale ressaltar, brancos.
O filme, lançado sem muito alarde pela Amazon Prime Video, contrasta a vida de seu protagonista com o que se espera de uma história de uma família negra nos EUA. Os Ellison são uma família com boas condições, casa na praia, com filhos que cursaram boas universidades. Ele é negro, mas por que sua literatura não é “negra” o suficiente para o mercado?
“Ficção Americana” lida com a culpa do branco supostamente progressista, mas que só consome esse tipo de “narrativa negra”. Da mesma forma, o filme brinca com editoras doidas para imprimir adjetivos como “necessário” ou “urgente” na capa de obras sobre sofrimento e preconceito e até com Academia do Oscar, que em 2019 premiou o medonho “Green Book” exatamente pela mesma culpa.
O texto Cord Jefferson e Percival Everett (autor do livro em que o filme se baseia), é o primeiro indicado ao Oscar na história a usar o termo “oscar bait” (“isca de Oscar”) em seu roteiro, o que traz de volta a culpa branca. A sociedade americana (para ficar no exemplo do filme…) não está pronta para ver negros protagonizando histórias como as suas – se o gueto hoje não é mais físico ou geográfico (como fica claro em um diálogo quando Monk volta para o bairro da família), ele ainda é cultural.
“Ficção Americana” é tecnicamente ótimo, da trilha sonora à montagem. A trilha sonora de Laura Karpman é cheia de jazz (ironicamente sem nenhuma música de Thelonious Monk) e ajuda no tom satírico do filme. Da mesma forma, alguns recursos de direção e montagem afastam a trama de soluções “bregas” – quando Monk começa a escrever seu livro, por exemplo, os personagens dele surgem à sua frente e dialogam com ele, dando vida e dinâmica à sequência.
Por outro lado, o excesso de metalinguagem, principalmente no terceiro ato, pode incomodar o espectador que talvez esperasse ver Monk em conflito com Sintara (Issa Rae). A personagem, uma escritora acadêmica, assim como o protagonista, se tornou uma autora best-seller com um livro sobre a vida no gueto, mesmo que ela nunca tenha vivido aquela realidade – ela é o epítome do que o mercado espera, e parece não ter problema nenhum com isso. A frustração se dá justamente pelo possível antagonismo entre os dois.
O filme, porém, não busca esse conflito, o que é até compreensível. Em sua essência, o filme traz uma história familiar cheia de camadas e afeto. Sterling K. Brown (indicado ao Oscar) é ótimo como o irmão de Monk e tem com o protagonista uma relação que não é simples, mas que é íntima e quase sempre direta.
“Ficção Americana” é engraçado, encontrando um tom de sátira de fácil consumo e assimlação em uma narrativa que não é complexa, mas tampouco é didática ou expositiva. Surpreende como Cord Jefferson demonstra domínio de cena em sua estreia e a maneira como conduz o filme, sem grandes solavancos, com uma crescente constante, mas sem buscar os caminhos mais fáceis e as soluções mais convencionais.
Tinha tempo que não via uma safra de tantos filmes classificados como bons saindo. Deu muita vontade de ver