Eu cresci em um ambiente religioso, e, por mais que desde novo não acreditasse no misticismo cristão, com o tempo passei a entender como essa herança geracional molda nossa sociedade. A ideia de configurar uma personalidade política como salvador, e de seus seguidores se comportarem como bastiões da moral pregada por tal figura, ilustram como a religião predominante de um espaço, mesmo sem perceber, molda o pensamento social.
Em “Fúria Primitiva” (Monkey Man), filme que marca a estreia de Dev Patel na direção, o autor, ao contar a história de um jovem que ganha dinheiro em lutas clandestinas enquanto busca vingança contra líderes corruptos que exploram os mais pobres, mostra ter uma base parecida.
Desde o prólogo do longa, a narrativa constrói diversos paralelos entre a desigualdade social na Índia e as lendas mitológicas hindus, focando principalmente na lenda do deus macaco Hanuman, que tentou alçar os céus, mas por sua audácia foi punido pelos “deuses maiores”.
A obra trabalha seus temas no formato de um filme de ação, se distanciando da violência gratuita e super desenhada da franquia “John Wick” (que é até mencionada), e monta as sequências de porradaria como um fator de justiça social. A direção aproveita esses momentos para mostrar sua versatilidade ao trazer elementos mais crus, desajeitados com uma variedade de planos (primeira pessoa, planos abertos e fechados e "pov") sem nunca cair na bagunça visual.
É interessante notar que essa variedade se mostra presente na construção de seus debates principais, onde são compostos takes expondo estes paralelos ao qual o protagonista e a classe desfavorecida pertencem. O personagem de Patel seria a encarnação, Hanuman, enquanto a elite representaria os deuses maiores.
Como afirma Pires e Rodrigues em “Abordagens Teóricas da Relação entre Cinema e Religião”, “Neste sentido, um filme que trate explicitamente de uma temática religiosa pode ser considerado mais histórico do que propriamente religioso".
Esse espelho fica mais evidente a partir do momento em que o protagonista se reconecta com suas origens e elementos tradicionais da cultura Indiana vão se tornando ainda mais presentes no cenário, como em pinturas ou itens sagrados, e na músicas, com instrumentos folclóricos.
O texto escrito por Patel, Paul Angunawela e John Collee consegue construir outras facetas para sua temática ao trazer ideias explicitadas por Marx, que afirmava que “A religião é o ópio do povo”. Essa frase, apesar de mal interpretada, em seu contexto original reforça que a crença em si não é um problema, mas que ela pode ser usada como ferramenta de manutenção da opressão, como explica o artigo “A crítica de Karl Marx à religião na obra A Questão Judaica”, do autor Ivanaldo Santos, “religião é eminentemente ideológica, ou seja, consolação e justificação de uma realidade onde reinam a opressão e a exploração”.
Dessa maneira, o filme mostra que as mesmas lendas e histórias que representam nossa história e são espelhos do cotidiano, podem ser usadas como ferramentas de manipulação de massas e reforçadores do status quo.
Com todos esses temas apresentados, talvez a mensagem mais importante reforçada pelo filme é que a opressão só acaba perante a luta. Deixando claro que a união é necessária e reforçando que, para se combater a opressão, é preciso se lembrar das origens, ter o passado e a cultura em mente. Por mais que a paz seja algo divino, para aqueles que vivem com a bota no pescoço alçarem um futuro mais igualitário, essa paz só se alcança depois da guerra.
Pedro Pimenta é jornalista, pós-graduado em cinema, designer, diretor e ator.
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