Hoje um merecido sucesso de bilheteria com o devastador “Guerra Civil”, Alex Garland é um dos nomes mais interessantes da produção cinematográfica nos últimos anos. Inicialmente roteirista dos filmes de Danny Boyle (“Extermínio”, “A Praia”, “Sunshine”), o cineasta também é responsável pelo texto do delicado “Não Me Abandone Jamais” (2010), de Mark Romanek, e se arriscou pelo mundo dos games (“Devil May Cry” e “Enslaved”) antes de encarar seu primeiro filme como diretor, “Ex Machina” (2014). A ficção científica foi um dos melhores filmes daquele ano e teve duas indicações ao Oscar: Roteiro Original e Efeitos Visuais (que venceu).
A recepção do filme tornou Garland um queridinho em Hollywood, mas a indústria aparentemente não estava preparada para as ideias do diretor. “Aniquilação”, seu trabalho seguinte, se tornou um exemplo da briga entre estúdios e realizadores; com o filme em mãos, A Paramount queria que Garland o reeditasse para torná-lo mais acessível, mas, para o azar do estúdio, o produtor Scott Rudin, que tinha direito ao corte final, se manteve ao lado do diretor.
A Paramount, então, optou por lançar o filme em mercado restrito nos EUA e vender seus direitos para a Netflix mundo afora. A crítica adorou a adaptação dos livros de Jeff VanderMeer para as telas, mas o público ficou dividido – misturando drama, alão, terror e filosofia, “Aniquilação” realmente não é um filme fácil. Quase como uma provocação ao mercado, Garland ainda escreveu e dirigiu “Men: Faces do Medo” (2022), um filme de terror intencionalmente incômodo e pouco acessível que lida com a perpetuação da misoginia e sobre o qual escrevi aqui.
Desgastado pela briga com o estúdio (Garland sempre quis que “Aniquilação” fosse lançado nos cinemas), o cineasta, entre “Aniquilação” e “Men”, fez “Devs”, uma minissérie lançada no Brasil pelo finado Fox Premium e agora disponível no Star+. A série tem oito episódios que trazem muito do que se espera de uma produção do cineasta, ou seja, ficção científica com um ritmo particular, estilo e questões existenciais que o tempo todo fazem o espectador se questionar acerca de sua própria existência.
A série tem início acompanhando o casal Lily (Sonoya Mizuno) e Sergei (Karl Gusman), dois funcionários da gigante da tecnologia Amaya. Sergei é convidado por Forrest (Nick Offerman), dono da empresa, para integrar o time de seu projeto mais secreto, o Devs. Muito a partir daqui a é spoiler e, por isso, talvez seja interessante até fugir de algumas sinopses por aí que revelam mais do que devia – pode até fazer parte da premissa, mas assistir à série sem conhecer essas informações causa um impacto maior.
“Devs” funciona como um exercício de estilo, mas consegue ir além com uma boa história, uma alternância de ritmos interessante e personagens que te fazem querer voltar àquele universo. Aos poucos vamos descobrindo como funciona e o que é desenvolvido no misterioso projeto. À medida que mergulhamos nele, menos entendemos e não tem problema nenhum nisso.
Ao contrário do material de um Christopher Nolan, por exemplo, “Devs” explica somente o necessário para que a audiência acompanhe o desenvolvimento da história. Garland, da mesma maneira que posteriormente fez em “Guerra Civil”, não faz questão nenhuma de te fazer entender como seus personagens fazem aquilo, ele apenas quer que você saiba o que aquilo pode causar.
Assim, “Devs” introduz teorias do multiverso, questões religiosas, livre arbítrio, etc.. A discussão ganha peso pelas atuações de Nick Offerman e Alison Pill, cujos personagens estão mais acostumados à ciência da série. Acostumado a comédias, Offerman surpreende com um Forrest que entende o peso de seus atos, mas insiste em continuar; é dele, e não na protagonista, a dor de maior identificação. Já Katie (Pill) é a voz da ciência, é quem se inseriu na criatura e já não consegue dissociá-la do resto da existência.
“Devs” é uma minissérie bonita – a história tem início, meio e fim, sem possibilidade de uma segunda temporada – que mistura ritmo de thriller com pura contemplação existencial. A série criada por Alex Garland é tecnicamente impecável, com montagem e edição de som de fazer inveja a blockbusters.
Ao fim, a minissérie é climática, imersiva, e pode parecer fria em alguns momentos, afastando o público não tão acostumado ao trabalho de Garland. “Devs” usa o macro para falar do micro, do aspecto pessoal em meio a algo muito mais amplo. A série é ambiciosa o suficiente para arriscar e ousar em seu final, indicando um caminho e seguindo por outro até chegar ao desfecho que talvez funcione de acordo com as crenças ou descrenças de cada um.
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