As primeiras histórias de crimes em livretos datam do século XVII, na China. Em 1617, no “Book of Swindles” (algo como “O Livro da Malandragem”), o autor Zhang Yingyu documentava crimes em histórias curtas, quase como contos. Foi na Europa, porém, que essas obras se tornaram literatura popular com a popularização de jornais mais baratos, os chamados tabloides, entre os séculos XVII e XVIII.
A curiosidade sobre crimes reais abriu espaço também para histórias de ficção. No início do século passado, Agatha Christie publicara seus primeiros livros e popularizou o gênero “criado” décadas antes com a publicação do conto “Os Assassinatos da Rua Morgue”, de Edgar Allan Poe, e do livro “A Pedra da Lua”, de Wilkie Collins. Com os textos sendo escritos há quase um século, foi o crítico literário Donald Gordon que cunhou o termo “WhoDunIt” que define esses suspenses ainda hoje.
Os “WhoDunIt”, o famoso “quem matou?”, estão em alta em diferentes formatos. Eles podem aparecer em obras mais classudas, como “Big Little Lies” ou a recente “Assassinato no Fim do Mundo”, ou em sátiras, como “Only Murders in the Building”. Nos últimos anos, no entanto, narrativas que remetem à Era de Ouro do gênero estão em alta. Não é coincidência que Kenneth Branagh tenha adaptado três romances de Agatha Christie, “Assassinato no Expresso do Oriente” (2017) quanto de “Morte no Nilo” (2021) e “Noite das Bruxas” (2023), ou que a Netflix tenha pagado uma fortuna pela marca “Knives Out” (“Entre Facas e Segredos”).
A longa introdução (perdão pelo vacilo) serve para contextualizar “A Morte Entre Outros Mistérios”, série lançada pelo Star+. Criada por Heidi Cole Adams (“The 100”) e Mike Weiss (“Chicago P.D.”), a série tem todos os ingredientes de um suspense da Era de Ouro, mas se esforça para ir além.
Logo no primeiro episódio, dirigido por Marc Webb (“500 Dias com Ela”), a série já apresenta seus personagens. O grande mistério, ao menos a princípio, é quem é o responsável pelo assassinato a bordo de um navio cheio de milionários. Para o azar do assassino, Rufus Cotesworth (Mandy Patinkin, de “Homeland”), outrora considerado o melhor detetive do mundo, está no navio e vai comandar as investigações até a chegada das autoridades. Acontece, claro, que todos no navio podem ser o assassino.
É muito interessante como “A Morte Entre Outros Mistérios” tem plena ciência dos limites da fórmula e, por isso, amplia seu escopo. O assassinato central logo se conecta com um fracasso do passado de Rufus e com Imogene (Violett Beane), mulher que cresceu alimentando algo entre a admiração e o ódio pelo detetive.
Com uma temporada relativamente longa (10 episódios) a série entende não poder permanecer no mesmo lugar por muito tempo – erro cometido pela já citada “Assassinato no Fim do Mundo”, com três episódios a menos. Assim, todo episódio traz revelações importantes, desenvolvimento de personagens através de flashbacks e boas viradas.
Um dos grandes acertos de “A Morte Entre Outros Mistérios”, talvez o maior deles, é justamente sempre seguir adiante. As subtramas se resolvem rapidamente, sem muita enrolação, e acrescentam novas camadas ao arco principal que, por sua vez, também se movimenta com o máximo de agilidade que o gênero permite.
Patinkin e Beane são ótimos juntos, dando força ao histórico conturbado de Rufus e Imogene e conferindo à série os tons distintos pretendidos pelo texto. Quando comandada por Rufus, o texto é mais sagaz e direto, quase como se o detetive nos convidasse a compartilhar de seu olhar sobre aqueles acontecimentos; suas descobertas nunca são aleatórias e convencem quando explicadas. Quando Imogene está em foco, “A Morte Entre Outros Mistérios” ganha novas possibilidades – a jovem tem interesses românticos e está envolvida praticamente em todos os arcos.
O texto busca referências diversas, da óbvia Agatha Christie a subtramas ao estilo “eat the rich” de “White Lotus” ou até mesmo “Succession”. Ao fim, “A Morte Entre Outros Mistérios” é inteligente e divertida, uma série de suspense que fica no limite de se levar a sério demais, mas nunca o faz, pelo contrário. A série mantém sempre o tom de comédia de erros que dá a ela um ar mais refinado, mas sempre mais perto do popular do que do cult. Uma das boas surpresas deste início de ano.
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